Tecnologias antigas e atuais nos museus da Campanha Gaúcha: os objetos do tempo
Em agosto fizemos visitas técnicas importantes para os projetos “Museus de ruínas em paisagens rurais: sustentabilidades do patrimônio industrial”, apoiado pelo CNPQ no edital 09/2022 e “Tecnologias antigas e atuais em culturas tradicionais ibero-americanas: sustentabilidade de paisagens históricas da produção”, também apoiado pelo CNPq na chamada 16/2024 – Faixa 1.
Neste texto vou relatar parte das visitas técnicas realizadas por mim e Ubirajara Buddin Cruz, pesquisador membro da equipe dos dois projetos e exímio fotógrafo. Nossa intenção foi visitar as cidades que formam a região turística Pampa Gaúcho, de acordo com o entendimento do Ministério do Turismo. Dos 15 municípios incluídos nessa classificação, 13 compõem a Mesorregião sudoeste do Estado. E ainda que todos interessem às pesquisas, concentramos as visitas em Candiota, Hulha Negra, Bagé, Dom Pedrito, Santana do Livramento e Quaraí. Essas cidades pertencem à Região Funcional 6 formada pelos COREDEs Campanha e Fronteira Oeste. São cidades fortemente ligadas pela origem histórica de ocupação do território e pelas características do tipo de produção que fazem. E, também pelo decréscimo demográfico. Neste texto, me detenho na cidade de D. Pedrito e no Museu Paulo Firpo. O próprio nome da cidade, por mais que passe despercebido, é uma notável referência ao que motiva buscar tecnologias que expressam o trânsito cultural de uma região que antes de ser fronteiriça, era, ocasionalmente, espanhola ou portuguesa. Há muito significado no dado de que o espanhol Pedro Ansoategui, de codinome Pedrito, tenha se instalado às margens do rio Santa Maria, com um rentável posto de contrabando. Esse rio, que a cada época de chuvas fortes, transborda suas margens, recebe, no final das tardes de dias ensolarados, a mesma luz de intensos vermelhos que colore os fins dos dias da região de Minas de Corrales e Cuñapiru. Voltando ao Museu, ele ocupa uma casa exemplar do acervo arquitetônico da cidade, edificado nas primeiras décadas do século XX.
Por do sol na região de Dom Pedrito e Minas de Corrales. Fotos de Francisca Michelon, agosto de 2025.


Fachada do Museu Paulo Firpo em Dom Pedrito. Foto de Ubirajara Buddin, agosto de 2025.

A casa é em si mesma, e a exemplo de tantas outras, um acervo do Museu. Mas desconfio que não seja essa a visão que o governo municipal tenha dos fatos. Soube, conversando com residentes, que há um projeto para edificar um novo museu, que comporte o volumoso acervo que foi sendo acumulado ao longo dos anos. A trajetória da casa, ainda hoje de fachada inalterada, é, no meu entendimento, um valioso documento sobre a história da cidade. Cada ocupação que ela teve, fala de um tempo e de um modo de viver já superado. Mas os ventos da modernidade são implacáveis, ainda mais quando um museu é mais conteúdo do que contexto. E sim, neste museu há muitos conteúdos que ligam os tempos e esclarecem o presente.
Um desses conteúdos é o carro funerário antigo, que fica no pátio da casa, sob uma cobertura que o protege parcialmente. A história que dele é contada é uma espécie de anedota que justificaria a sua existência por obra (demorada) do proprietário da única funerária da cidade.
Carro funerário do Museu Paulo Firpo. Foto de Ubirajara Buddin, agosto de 2025.


Nos idos dos anos de 1930 (alguns contam que isso aconteceu em um impreciso início do século), outra funerária instalou-se na cidade e se apresentava moderna porque dispunha de um veículo motorizado para realizar os cortejos através das ruas de Dom Pedrito. Foi então que a dita funerária decidiu investir em um carro fúnebre com vistas a não perder para a concorrência, e o fez com todas as pompas. De fato, a peça é interessante, sobretudo nos seus detalhes. Por exemplo, na parte traseira há gravado o nome do seu construtor (informação dada pelo Museu).
Parte traseira do carro funerário com nome gravado. Foto de Francisca Michelon, agosto de 2025.

No entanto, mais interessante foi lembrar que vi outro exemplar semelhante no Museu Ford T City, em Tacuarembó. Lá há um carro quase igual, em ótimo estado. Ambos foram restaurados, em algum momento.
Museu Ford T em Tacuarembó, Uruguai. Foto de Francisca Michelon, agosto de 2025.


Ainda que hoje o Museu de Tacuarembó conte com muitas coleções de diferentes objetos, quando estive lá, pela primeira vez, em 2018, a coleção dos Ford T era o seu acervo exclusivo. Mas não lembro de, naquele ano, de ter visto o carro fúnebre. Todavia, são poucas as informações disponíveis e não posso assegurar que a história de ambos os carros tenha tido mesma origem. Mas, fato é que transcendendo a divertida anedota, esses carros, especialmente o do Museu de Tacuarembó, são vestígios de um aspecto essencial da indústria automobilística da época e o porque do fordismo ter se transformado em um sistema de produção industrial com lógica própria.
Carro funerário do Museu Ford T City em Tacuarembó. Foto de Francisca Michelon, agosto de 2025.

Ainda que os dois carros não sejam iguais, as semelhanças são muitas e há de se pensar que poderiam ser carrocerias fabricadas no mesmo local ou seguindo um mesmo modelo. Carece de aprofundamento e a pesquisa sobre o item é indicada. No momento, o que se apresenta é a proximidade dos lugares e dos tempos. Sem dúvida, a fronteira, ao menos essa da qual falamos, é mais proximidade que divisão, mais compartilhamento do que individualidade. Os trânsitos culturais, de fato, desconhecem linhas divisórias.
Notícia escrita pela Professora Francisca Ferreira Michelon em 25 de setembro de 2025.